Com este título, publica João César das Neves uma crónica no DN. Devo dizer que ando em fase de aversão a jornais, que raramente leio; pelo que não sou leitora assídua do DN, muito menos dos escritos deste senhor, e a minha ignorância é tanta que apenas creio tratar-se de um professor universitário, conotado com posições bastante conservadoras, creio que próximas da Opus Dei. Mas até posso estar errada, e para o caso também não interessa. O que interessa é que, tendo-me sido chamada a atenção para esta crónica, fiquei perplexa ao lê-la, e sem saber se havia de levar aquilo a sério e me indignar, ou, pelo contrário, rebolar de riso dada a fina ironia que devia estar escondida por detrás das suas palavras.
Entendamo-nos. Não me movem intuitos de denegrir a Opus Dei ou de zurzir por zurzir os que nela se revêem. Eu não me revejo, e pronto, respeito os outros - mas já agora deixem-me confessar que nunca tenho tanta vontade de usar saias verdadeiramente minis e decotes verdadeiramente maxis como quando sei que vou estar na presença dos seus membros... Apresso-me a acrescentar (alarmada ainda pelo que se pode ler no anterior post) que tais vontades não costumam passar de inofensivas fantasias que não ponho em prática! Mas estou a sair do rumo que me norteava, "retournons à nos moutons", como diria um professor de francês que nunca esqueci.
Não me movem, dizia eu, intuitos de dizer mal por dizer, só por ser conservador e religioso. Mas sinceramente, a tal crónica cheirou-me de tal forma a naftalina, e a uma tão estranha naftalina... Tive a sensação de estar a ser, como mulher, comparada a Nossa Senhora. Ora eu sou demasiado imperfeita para me poder comparar à Mãe de Deus. Sou só uma mulher, e não me revejo, de modo algum, no que o referido senhor considerou a glória feminina. E nem sequer sou uma feminista acérrima e passo, em geral, por razoavelmente conservadora.
Vejamos o que é então afirmado. Primeira frase: "A mulher é no mundo a suprema criatura." Bem, eu cá acho que homem e mulher estão em plano de igualdade nessa matéria, se um for suprema criatura o outro também será; mas é um homem que o afirma, e eles, por vezes, gostam de nos adoçar a boca com afirmações deste género... Passa, apesar de parecer discurso de intenções mais ou menos sedutoras. Diz mais à frente que a mulher é "superior pela beleza, pela sensibilidade e intuição, até pela energia e resistência"; muito obrigada, mais uns piropos sabem sempre bem ao ego feminino, demasiadamente, até, por vezes somos umas tontas nesta matéria. Concordo que somos mais intuitivas, mais enérgicas e resistentes, de um modo geral.
Continuando: "Esta excelência feminina nem sempre foi reconhecida." Pois não, todos o sabemos. Até aqui, de acordo. Mas e o que vem depois? "Vivemos no tempo que mais distorceu e desprezou o lugar eminente da mulher". Como? Prossigamos, a ver se entendemos.
"Hoje o sucesso de todos mede-se pela economia, carreira e política. Felizmente a mulher ganhou aí um papel de destaque, apesar de ainda segregada. A igualdade de direitos foi uma conquista e é uma necessidade evidente. Mas a imposição de igualdade de funções esbate a superioridade feminina. Quando a humanidade põe a sua confiança nos temas externos, perde de vista a identidade e o centro da vida: amor, família, lar, felicidade." Concordo que o ritmo da vida de hoje remete para segundo plano a vida familiar, e que isso faz imensa falta e é uma das grandes causas dos problemas sociais existentes. Mas o que quer dizer "a imposição de igualdade de funções esbate a superioridade feminina"?
Vejamos se vem explicado mais à frente. Diz-se a seguir: "São hoje esquecidas e atacadas as duas razões mais próprias da glória feminina, o encanto da virgindade e a grandeza da maternidade." Não percebi, de novo. Então acima falava-se da igualdade de direitos conquistada, do papel cada vez maior assumido, e bem, pelas mulheres na sociedade, e agora diz-se que o que vale mesmo é a virgindade feminina e o facto de se ser mãe?
Entendamo-nos: quem já se deu ao trabalho de passear por todo o meu blog, vê o amor que tenho à minha filha, como nas minhas palavras transparece a imensa felicidade de ser mãe. Mas daí a falar da "grandeza da maternidade"... Lá está, soa assim um bocado a frase oitocentista, própria de uma qualquer revista de lavores do tempo em que era muito bom deixar as mulheres bem controladas dentro do universo caseiro. Lá está o tal cheiro a naftalina. Encaro o ser mãe não como uma "missão", mas como parte integrante de ser mulher, e como algo divertido, fantástico, uma aventura cheia de responsabilidades mas também de risos. Assim dito soa diferente, não é?
E desculpem, mas qual é "o encanto da virgindade"? Em primeiro lugar, para se ser mãe é preciso deixar de ser virgem primeiro. Salvo o caso de Nossa Senhora, claro, mas Ela é em tudo especial; e já agora, porque é que Maria tinha de ser Virgem? Não digo antes de conceber Cristo, isso eu compreendo. Mas porque é que os teólogos se andaram a afadigar a pensar que Ela permaneceu com o hímen intacto depois do parto? Algum dos que teorizou sobre o assunto já assistiu a um parto? Ou, mais ainda, já passou por um? Que raio de importância tem uma membrana que não serve para nada para provar a castidade e a pureza de Maria? E seria Ela menos digna de louvor se tivesse entregado o Seu corpo a José? A meu ver, não.
Mas deixemos a teologia. Na lógica do cronista, parece que a mulher ou é virgem ou é mãe para poder atingir a sua glória. De novo não concordo. De modo algum. E de novo isto me cheira a naftalina e a um pensamento reducionista. A maternidade realiza-me de uma forma muito especial, já o disse. O trabalho que faço realiza-me também, dá-me um gozo imenso, estimula a minha mente. A virgindade nunca me fez sentir realizada com coisa nenhuma. Já uma vida sexual activa realiza, e de que maneira, uma mulher - tal como um homem. Faz falta a ambos para encontrar aquele equilíbrio que nos faz felizes.
E agora pergunto: será a virgindade um valor em si? E a questão coloca-se apenas relativamente à virgindade feminina? E a virgindade masculina, já agora? Ou como é que os homens deixam de ser virgens, se as mulheres não deixarem de o ser também? São dois pesos e duas medidas? Será que a maior parte das vezes que os homens elogiam e louvam a virgindade feminina não o fazem com o egoísta desejo de serem eles os primeiros e únicos?
Este texto ficou longo e complicado, e incompleto também, porque mais haveria a dizer, só que já esgotei em muito o tempo que queria dedicar a este comentário. Farão por certo melhor os meus leitores não o lendo até ao final (devia ter avisado há mais tempo). Mas tudo isto me veio à mente ao ler esta crónica. Juntamente com uma sensação de que quem a escreveu vive num mundo diferente daquele que conheço. Perdoe-me João César das Neves, mas só pode ser isso.