Um pouco mais de azul

terça-feira, março 23, 2004

O meu pai

Dou-me agora conta de que passou o dia do pai. Não ligo muito a "dias de...", confesso. Não é no dia do pai que gosto mais do meu pai; nem no dia da criança que descubro que os garotos existem; e tenho uma particular embirração pelo dia da mulher, que gostaria muito mais que não tivesse necessidade de existir (já que seria sinal de que a igualdade de oportunidades, de tratamentos, de direitos existia de facto) e serve por vezes para hipócritas declarações em favor do sexo feminino que no dia seguinte dão lugar à falta de partilha dos trabalhos domésticos, etc, etc, etc. Mas o dia do pai é o dia do pai. E este passou sem que eu tivesse dedicado umas linhas ao meu pai, coisa que já há muito queria fazer. Por isso, apesar do adiantado da hora, aqui vai disto.
Sou parecida com o meu pai, tanto fisicamente como na forma de falar (com as mãos a dizer quase tanta coisa como a boca), como na forma de organizar o raciocínio (de uma forma obrigatoriamente clara). Sou também muito diferente dele na maneira de ser. Não concordo com muitas das suas posições e da sua forma de encarar o mundo. Sempre nos pegámos um pouco, sobretudo quando, ao crescer, eu me fui revelando diferente dele. Foi um pai maravilhoso na minha infância, não conseguiu entender grande coisa de mim quando passei a adolescente e, depois, a adulta. Mas esteve sempre ao meu lado, e continua a ser o meu ponto de referência no que a probidade, honestidade, rectidão de carácter diz respeito. Tenho muito orgulho em ser sua filha e em encontrar em mim qualidades que sei herdadas dele. Sei quanto se orgulha desta filha, a mais nova, a que mais de perto seguiu os seus passos. E eu orgulho-me, muito, de ser sua filha.
Hoje, o meu pai é uma sombra do que era. Há anos que está inválido, numa situação que me dói, todos os dias. Dói ver o homem independente e orgulhoso numa situação de total dependência. Ver o homem que tão bem falava com dificuldade de articular uma frase inteira, apesar da lucidez se manter. Dói saber que pouco posso fazer para melhorar a sua situação.
Mas sabe sempre bem vê-lo contente porque lhe conto as últimas "façanhas" da neta, de quem ele tanto gosta. Sabe bem dar-lhe um beijo e receber outro, muito terno, em troca. Sabe bem ver o seu sorriso. No fundo, apesar de tudo quanto dói, sabe muito, muito bem tê-lo ao meu lado ainda.
Gosto de recordar as brincadeiras da praia, quando ele tinha a infinita paciência de ir apanhar peixinhos connosco; as imensas vezes em que largava o trabalho para escrever, com a sua letra bem desenhada, as etiquetas que identificavam os nossos livros escolares, ou para desenhar casinhas para as filhas brincarem; as tardes frias de Inverno passadas a ler-nos romances da Enid Blyton, enroscados num sofá, com uma grossa manta sobre as pernas; as idas para a cama em que ele nos lia contos tradicionais recolhidos por Leite de Vasconcelos, ou nos contava velhas histórias de quando era estudante. Gosto de poder recordar tudo isto enquanto ele está vivo, enquanto é possível apertar-lhe a mão e partilhar com ele essas memórias.
Daqui por uns meses, num passo muito importante da minha vida, ele não vai poder estar fisicamente ao meu lado. Mas vai estar num especialíssimo lugar, dentro do meu coração; e vai ser ele quem me irá inspirar, não duvido disso.


 
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