Em mais um dia de chuva, recordo tempos de menina, quando, lá pela segunda quinzena de Agosto, chovia na praia. Nesses dias não se podia ir à praia, mas brincava-se a valer de outras formas. Lembro-me, sobretudo, das horas passadas na garagem, que era naquela casa como que um sótão cheio de coisas velhas a descobrir. Juntava-se ali toda a miudagem a brincar. Ou ficávamos só eu e a minha irmã, a mexericar em tudo. Ali havia velhos armários de cozinha, cheios de naperons passados de moda e frascos vazios, que a minha avó tinha a mania de guardar. Ali estava, também, a cadeirinha alta que fora da minha mãe (que pena já não a ter...), algumas das suas velhas bonecas, tão diferentes das nossas, o seu fogãozinho de folha, com loucinhas, que um dia espero restaurar. Ali se guardavam enormes malões vindos do escritório do meu avô, cheios de papéis com o cheiro a bafio do passado, carimbos, toda uma série de inutilidades em que delirávamos mexer. Ainda sinto o cheiro daquela garagem, assim como da despensa, onde uma velha banheira de bonecas ficava guardada o ano inteiro, esperando que chegássemos para com ela brincarmos. Na divisão que servia de escritório ao meu pai (ele lá passava sem um escritório, mesmo nas férias?), dormiam durante o ano as bonecas de cartão com roupas para vestir, de que eu tanto gostava, e uma imagem de Nossa Senhora de Fátima, de plástico fluorescente,pirosíssima, mas que me fascinava por brilhar no escuro e por ter uma caixa de música com um mecanismo muito engraçado, que eu ficava a olhar. Nas gavetinhas da escrivaninha (hoje na minha sala) guardavam-se pedrinhas, conchas e lápis de cor. E ao lado dos blocos de folhas brancas preenchidas pela letra miúda e regular do meu pai ficavam os nossos livros de miúdas. No alçado da escrivaninha o espaço era pouco para todos os livros, os que levávamos e os que nunca saíam da casa da praia e só se liam, portanto, no Verão: uma colecção inteira de banda desenhada da Disney, encadernada, e sobretudo a larga maioria dos romances de Erico Veríssimo. Foi nessa casa, já mais crescida, que descobri o mundo de Clarissa, no qual ainda hoje me delicio. Música ao longe, Solo de clarineta, vários outros que tenho vontade de reler - preciso de descobrir onde estão, no meio dos inúmeros livros que estão para vir de casa dos meus pais. Esses, quero-os para mim.
Tenho saudades desse tempo, dessa casa onde ecoavam os nossos passos, a descer as escadas sempre aos saltos, deslizando pelo corrimão na parte final ou saltando os últimos degraus. Saudades do arroz de mexilhão que a minha avó preparava, apanhado por nós nos rochedos deixados a descoberto pela maré vaza. Saudades de serões passados a jogar cartas - ainda saberei jogar "crapaud"? Do relógio de pêndulo que marcava o passar do tempo, que então era lento, não tinha pressa nenhuma. Do barulho da porta das traseiras a bater com força, do assobio da nortada nesse lado da casa, do pátio onde jogávamos badminton e à bola e se fazia equilibrismo em cima de um muro estreito.
Quase mais do que visuais, as minhas memórias são feitas de sons e cheiros.