Um pouco mais de azul

quarta-feira, agosto 11, 2004

Memórias de infância

Em mais um dia de chuva, recordo tempos de menina, quando, lá pela segunda quinzena de Agosto, chovia na praia. Nesses dias não se podia ir à praia, mas brincava-se a valer de outras formas. Lembro-me, sobretudo, das horas passadas na garagem, que era naquela casa como que um sótão cheio de coisas velhas a descobrir. Juntava-se ali toda a miudagem a brincar. Ou ficávamos só eu e a minha irmã, a mexericar em tudo. Ali havia velhos armários de cozinha, cheios de naperons passados de moda e frascos vazios, que a minha avó tinha a mania de guardar. Ali estava, também, a cadeirinha alta que fora da minha mãe (que pena já não a ter...), algumas das suas velhas bonecas, tão diferentes das nossas, o seu fogãozinho de folha, com loucinhas, que um dia espero restaurar. Ali se guardavam enormes malões vindos do escritório do meu avô, cheios de papéis com o cheiro a bafio do passado, carimbos, toda uma série de inutilidades em que delirávamos mexer. Ainda sinto o cheiro daquela garagem, assim como da despensa, onde uma velha banheira de bonecas ficava guardada o ano inteiro, esperando que chegássemos para com ela brincarmos. Na divisão que servia de escritório ao meu pai (ele lá passava sem um escritório, mesmo nas férias?), dormiam durante o ano as bonecas de cartão com roupas para vestir, de que eu tanto gostava, e uma imagem de Nossa Senhora de Fátima, de plástico fluorescente,pirosíssima, mas que me fascinava por brilhar no escuro e por ter uma caixa de música com um mecanismo muito engraçado, que eu ficava a olhar. Nas gavetinhas da escrivaninha (hoje na minha sala) guardavam-se pedrinhas, conchas e lápis de cor. E ao lado dos blocos de folhas brancas preenchidas pela letra miúda e regular do meu pai ficavam os nossos livros de miúdas. No alçado da escrivaninha o espaço era pouco para todos os livros, os que levávamos e os que nunca saíam da casa da praia e só se liam, portanto, no Verão: uma colecção inteira de banda desenhada da Disney, encadernada, e sobretudo a larga maioria dos romances de Erico Veríssimo. Foi nessa casa, já mais crescida, que descobri o mundo de Clarissa, no qual ainda hoje me delicio. Música ao longe, Solo de clarineta, vários outros que tenho vontade de reler - preciso de descobrir onde estão, no meio dos inúmeros livros que estão para vir de casa dos meus pais. Esses, quero-os para mim.
Tenho saudades desse tempo, dessa casa onde ecoavam os nossos passos, a descer as escadas sempre aos saltos, deslizando pelo corrimão na parte final ou saltando os últimos degraus. Saudades do arroz de mexilhão que a minha avó preparava, apanhado por nós nos rochedos deixados a descoberto pela maré vaza. Saudades de serões passados a jogar cartas - ainda saberei jogar "crapaud"? Do relógio de pêndulo que marcava o passar do tempo, que então era lento, não tinha pressa nenhuma. Do barulho da porta das traseiras a bater com força, do assobio da nortada nesse lado da casa, do pátio onde jogávamos badminton e à bola e se fazia equilibrismo em cima de um muro estreito.
Quase mais do que visuais, as minhas memórias são feitas de sons e cheiros.


 
Site 

Meter