Um pouco mais de azul

segunda-feira, agosto 09, 2004

O mal

A minha filha chegou a casa com uma revista que falava da Anne Frank e do seu diário. Perguntou-me se o tinha, mostrou interesse em lê-lo. Hesitei em passar-lho para a mão, por um lado por ela ainda não ter dez anos sequer, por outro por saber que ia suscitar uma catadupa de perguntas sobre anti-semitismo, campos de concentração, e sobretudo que iria haver uma questão fundamental: o porquê.
Acabei por lhe dar o Diário, que ela está a devorar. Foi um castigo mandá-la para a cama, queria ler mais. E, entretanto, choviam as perguntas. O que é ser judeu e porque é que isso torna as pessoas diferentes das demais. Porque é que os perseguiam. Porque é que tinham de usar uma estrela na roupa. Porque é que a Anne e a família tinham de se refugiar. O que era um campo de concentração. Porque é que cortavam o cabelo aos presos. O que eram as câmaras de gás.
É muito difícil explicar a uma criança de alma pura o que é o mal, o mal em estado puro. É difícil ver os olhos límpidos da minha filha entristecerem ao saber que havia pessoas que tratavam o seu semelhante daquela forma, e, pior ainda, que continua a haver. Respondi-lhe com sinceridade e de forma simples, que ela pudesse entender. Prometi ver com ela, na internet, o que encontrávamos sobre Anne (as crianças hoje só querem o que está on-line...). Prometi mostrar-lhe livros sobre campos de concentração, explicar-lhe o que foi o horror do Holocausto. E ver com ela um filme que penso que compreenderá: A vida é bela.
Este é um dos filmes que mais me tocou. Há quem critique a forma "leve" como é mostrada a vida num campo de concentração. Há quem veja no filme uma comédia que brinca com coisas sérias. Eu vejo uma das mais bonitas histórias de amor que alguma vez me foi dada conhecer. Primeiro, o amor do pai e da mãe, cheio de episódios caricatos, doidos - mas lindo, contado com uma imensa ternura. Depois, o amor do pai pelo seu filho, e essa coisa fantástica que foi conseguir transmitir esperança ao filho quando nenhuma esperança era consentida, conseguir que o filho risse quando só o choro e a dor os rodeavam, dar um sentido a tudo o que se passava quando nada fazia sentido, e velar por ele, não o deixar desanimar nem sentir desamparado.
Talvez o "conto de fadas" de Benigni permita que a minha filha olhe pela primeira vez para o horror nazi sem se assustar demasiado. Daqui por mais uns anitos, vou ver com ela A lista de Schindler. Lembro-me de ter lido uma apreciação ao filme feita por um antigo professor meu, que dizia que um dia o mostraria ao filho para que este soubesse o que é o mal. Spielberg, a meu ver (e é a opinião de uma completa ignorante da 7ª arte), fez um filme que conta mal uma história e em que falta espessura à personagem de Schindler, mas conseguiu de forma magistral ilustrar o mal, o mal, repito, em estado puro.
Hoje, a minha filha ficou a saber que tudo isto existiu. Os olhos dela ensombraram-se. E eu espero que, ao longo de toda a sua vida, esses olhos mantenham a capacidade de se ensombrar diante da desumanidade e do preconceito racista ou religioso. E que ela se indigne como hoje se indignou, e que saiba ver sempre no outro a imagem dela própria.


 
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