Ontem fui ver-te, Mãe. Não a ti, mas ao que resta de ti de palpável. Não gosto nada de ir ao cemitério. Não gosto de ter lá três túmulos a visitar. Entro e saio rapidamente, e desta vez nem sequer fiz limpezas. Acendi uma vela, somente. As flores ficaram cá em casa, ao lado das fotografias que vos perpetuam para além da minha memória e do meu amor.
A cada túmulo, uma onda de recordações. O meu avô, com paciência infinita, a segurar o elástico para nós saltarmos. A chegar da rua com a sua pasta, ou sentado no sofá com um lápis dentro de um papel enrolado, fingindo o cigarro que lhe estava proibido. O único avô que conheci, e que partiu numa noite de Inverno quando eu tinha 9 anos. Depois, a minha avó, minha madrinha, alma da nossa casa. Anos e anos de vida ao seu lado, de carícias na sua pele macia, de ver os seus olhos grandes, lindos, a que o brilho nunca faltou. A minha avó - com tudo o que esta palavra pode conter - como lamento que a tua neta não te tenha podido ter ao lado como eu tive a tua mãe, Mãe... Até aos meus vinte e tal anos, até uma noite de Maio em que partiu pacificamente poucos anos antes de chegar aos cem.
E depois, tu. A mais dolorosa das visitas de Dia de Finados. Já faz quase seis anos, Mãe. E eu ainda sinto o teu último abraço e recordo o calor que aos poucos abandonava a tua mão que ficou, tanto tempo, entre as minhas. Recordo tudo, o tom de voz, a tossezita seca que nos garantia serem teus os passos nas escadas, tu a ajudares-me a lavar-me enquanto eu te contava o que se tinha passado na escola. Tu sempre ao lado, tu que eu agora compreendo como antes de ser mãe não conseguia entender. Tu com quem me sinto e sei cada vez mais parecida, apesar de ter crescido achando-me muito mais parecida com o Pai. E sou, nalgumas coisas. Mas outras são tuas, e fico tão feliz por as ter herdado e aprendido de ti!
Muitas vezes, Mãe, dou comigo a fazer qualquer coisa e penso em ti, ou no Pai, ou na minha Avó, que antes de mim fizeram esses gestos exactamente como os faço agora. Outras, lembro-me de como tudo parecia perfeito todas as manhãs, ao sair para a escola, e me vejo agora sempre em corridas, sempre em cima da hora, tudo menos perfeita. Seriam os meus olhos de menina a ver a perfeição onde estava apenas carinho e boa vontade? Será que um dia a minha filha pensará na azáfama dos dias de aulas e me verá perfeita como eu te vejo a ti, Mãe?
Ontem fui ver-te ao cemitério, Mãe. Mas todos os dias te sinto aqui, perto de mim, dentro do meu peito, no sorriso e nos olhos da tua neta.