Um pouco mais de azul

sábado, abril 10, 2004

A minha mãe

Sei que o que escrevi atrás tem um tom fortemente confessional. Mas hoje apetece-me escrever assim. E por isso falo da minha mãe.
Tem sido uma presença nos meus escritos, mas sempre de forma velada, de forma contida. Contava falar dela daqui por mais uns dias, por ocasião do seu aniversário - o quarto em que cá não está. Apetece-me fazê-lo agora.
No pouco que tenho dito a seu respeito, penso ter ficado bem patente o meu muito carinho, a saudade imensa; tão grandes, ambos, que em geral me calo, nada digo. De algum modo, as memórias dela são minhas, só minhas; guardo-as num cantinho muito escondido e preservado do meu coração. Dessas memórias, tento apagar quanto houve de feio nos seus últimos anos. Quanto doeu e quase destruiu a sua imagem. É o que mais me dói, o que mais me custa: quase ter perdido a memória da minha mãe tal qual ela era. Aos poucos, porém, e felizmente, é a autêntica imagem dela que se impõe.
A minha mãe era uma mulher pequenina e bonita, sobretudo quando sorria (um sorriso que se tem transmitido de geração em geração...). Meiga, generosa, nunca a vi a pensar nela - estavam sempre primeiro as filhas, o marido, os pais, os alunos, em tudo. Era professora do liceu, e devia ser uma professora excepcional, pois tantos anos depois ainda encontro antigos alunos que não a esqueceram, que se comovem ao saberem que ela já partiu deste mundo, que me contam episódios que ela protagonizou e que os marcaram para sempre. Que orgulho eu tenho nessas ocasiões...
A vida não lhe foi fácil. Viu morrer o seu primeiro filho com 6 anos, num acidente de automóvel; era o meu irmão mais velho, que nunca cheguei a conhecer, pois só nasci depois da sua morte estúpida. Agora que sou mãe, faço uma ideia do que ela deve ter sentido. Quando ela morreu, a par da ideia que ela estava finalmente em paz, consolou-me pensar que de novo tinha o meu mano nos braços - uma pequena pieguice, eu sei; mas bonita...
A minha mãe tinha doença de Parkinson. Como o Papa - por algum motivo eu não consigo olhar para ele, sempre que aparece na TV ou nos jornais. Conheço bem demais a rigidez da face e das mãos, a tremura, o balbuciar arrastado das palavras, o babar, a inexpressividade do olhar. Admiro imenso João Paulo II: ele dá a cara quando tudo nele se degrada, se destrói, a pouco e pouco mas sem remissão, sem retorno. A minha mãe escondia-se. Tinha vergonha de não ser mais a pessoa que era. É preciso uma imensa coragem para agir de outra forma, como o Papa faz, à vista do mundo inteiro.
A doença da minha mãe durou cerca de 15 anos. Na sua fase final, teve a alegria de ver nascer a primeira neta - a minha filha. Rejuvenesceu com isso, com a sua vontade de ajudar e de estar com a bebé, que tem o seu nome. Mas a doença rapidamente retomou o seu curso inexorável. A minha filha crescia e tornava-se autónoma, a minha mãe fazia o caminho inverso. Uma deixava de precisar de fraldas, a outra passava a usá-las. Uma começava a comer pela sua própria mão, a outra tinha de ser ajudada quando comia. Uma aprendia a andar, a outra perdia a capacidade de o fazer.
A minha mãe nunca deixou de saber quem eram as filhas, nem as netas - pois entretanto nasceu a minha sobrinha. Nunca me esquecerei como foi capaz de se virar na cama para ver o presépio que a minha filha fizera para ela, na véspera de morrer.
Menos ainda esquecerei que a minha mãe esperou por mim para morrer, nos meus braços. Foi a sua última prova de amor. E sei que ela está algures num Além que não sei como será, mas em que firmemente acredito. E que de lá me acompanha, livre já do corpo doente que a aprisionava. A minha filha diz que ela está numa estrelinha no céu. E às vezes ambas olhamos o céu estrelado e pensamos nela, e sorrimos-lhe, com o sorriso que ela nos deixou a ambas...
Desculpem a tristeza do que aqui deixo escrito. Mas estava a precisar de o dizer. No Natal, na Páscoa, estas memórias são mais vivas. As saudades também. No fundo, mesmo que só lá muito no fundo, todos nós somos meninos e queremos o colo da nossa mãe. Eu queria, muito...


 
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