Um pouco mais de azul

sábado, abril 10, 2004

Confissão

Se eu pudesse escolher, não havia comemorações de Páscoa, nem de Natal. Não para mim, não com almoço de família.
Estou farta de não poder escolher. Ou, se calhar, farta de escolher em prol dos outros, e não de mim.
Por uma vez, queria passar um Natal ou uma Páscoa sem vontade de chorar, sem doer. Há quantos séculos é que isso não acontece?
Faço das tripas coração, tempero cabrito para o almoço de domingo, faço pão-de-ló e folar, encho taças com amêndoas coloridas, preparo o serviço melhor para pôr na mesa, afinco um sorriso no rosto, estou animada e alegre... e espero que a noite chegue, para ficar sozinha e poder, finalmente, chorar.
Quem ler isto, depois do que ontem aqui escrevi, deve pensar que sou meio avariada da cabeça, ou pelo menos que tenho as maiores alterações de humor do mundo. Mas não. Quer dizer... se calhar sou mesmo desaparafusada, não digo que não; mas não é por isso que estou assim. O que está em causa, na verdade, é que depois de anos a fio a ver a minha mãe doente, cada vez mais doente, é a vez do meu pai, já há anos também. Depois de um, o outro. Estou farta de passar festas familiares a ter de dar a comida na boca a alguém que amo e que não é um bebé a crescer, mas um adulto a apagar-se aos poucos. Por mais que tente, por mais que já esteja habituada, dói. Dói por eles e por mim.
Na próxima festa, no próximo Natal, cá vou estar, de novo fazendo das tripas coração para que a minha dor não provoque mais dores nem a ele, nem à minha filha. Não fujo, nunca fugirei enquanto ele viver. Quando chegar a festa em que ele não comer pela minha mão, ou pela de outra pessoa, será porque ele já cá não estará. E vou nessa altura ter saudades destes momentos, os possíveis, os que restam. Os que, ano após ano, e apesar da dor, eu não falho. Mesmo que na véspera me apeteça desaparecer daqui, ou que no final vá encharcar de lágrimas a minha almofada.
Como entendo, agora, certas melancolias da minha avó, dos meus pais, quando eu era pequena demais para perceber o que se escondia por detrás das sombras que lhes toldavam por vezes o olhar, quando era Páscoa e Natal...


 
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