Um pouco mais de azul

quinta-feira, março 03, 2005

Onde se fala de coisas complicadas

Ontem, dei ao veterinário a ordem de dar uma injecção letal ao meu cão e assim acabar com o seu sofrimento, que iria apenas arrastar-se até à morte natural. Fi-lo para que ele não sofresse.

Hoje, visitei de fugida o meu pai, inválido há cinco anos, cujo estado de saúde é uma das feridas que trago comigo todos os dias, e que nem sequer consigo sempre enfrentar, por ser tão forte a dor quando o comparo com o homem que ele era e o vejo agora, débil, totalmente dependente dos outros. Sinto-o tão mais dolorosamente quanto, durante mais de uma década, assisti à lenta e inexorável deterioração da minha mãe, vítima de uma das mais penosas formas de doença de Parkinson. Nada envelhece, endurece e ensina mais uma pessoa do que ver invertida a ordem natural das coisas, e passarmos nós a ser quem cuida, lava, muda fraldas a quem um dia fez isso por nós. Só que nós estávamos a crescer, eles a morrer, aos bocadinhos. A inversão dos papéis é, repito, das mais complicadas e dolorosas experiências que a vida nos dá. Daquelas que deixa sombras nos olhos mais transparentes.

Hoje em dia, cada vez mais se atira a morte, a velhice, o que é feio de ver (e tememos um dia ter de passar) para o canto das coisas para onde não se deve olhar. Basta ver como alguém escreveu outro dia, num certo blog que toda a gente sabe qual é, e que não linko porque não estou a lançar lenha na fogueira, mas a reflectir sobre a questão que ele, decerto sem sequer dar por ela , colocou, ao achar indigno que o papa mostre a sua decrepitude em público.
Não vou aqui falar da máquina burocrática em torno do papado, nem de se João Paulo II deveria ou não abdicar, ou se a doença dele está a ser instrumentalizada por uns ou por outros (isso poderá ficar para outro dia em que me apeteça escrever sobre temas sérios). Falo, apenas, dessa ideia da indignidade de mostrar a doença em público, de exibir perante os outros a decrepitude, a velhice, a invalidez. Ideia válida para o papa como para qualquer outra pessoa. Válida, por exemplo, para a minha mãe e para o meu pai (eu funciono um bocadinho à maneira da Miss Marple, através do que vejo e sinto no meu mundinho e no meu coração).

Afirmações como essa lembram por demais ghettos, lares que são depósitos de velhos doentes, que assim não dão trabalho, não têm visibilidade, não nos incomodam e não lembram que esse pode ser o destino de qualquer de nós. A própria morte foi remetida para o mundo asséptico dos hospitais, e transformou-se num tabu, apesar de ser tão natural como a vida. Glorifica-se a juventude, a beleza, a sensualidade, as formas perfeitas de corpos sem mácula.

Ao mesmo tempo, fala-se cada vez mais da eutanásia. E eu tenho medo do que abrir essa porta, por compaixão para quem sofre, possa acarretar consigo - a tentação de eliminar, precisamente, o que não cabe nesse mundo que descrevi, em que tudo se pretende perfeito; de eliminar o que parece não servir para nada e apenas dar trabalho.
Ontem, autorizei que adormecessem para sempre o Pluto. Fiz bem, sei-o
Nem hoje, nem nunca autorizaria a eutanásia na minha mãe ou no meu pai. Em nenhum ser humano.

No entanto... Não sendo, repito, de modo algum, a favor da eutanásia, também não sou a favor de lutar com todos os meios contra o inevitável. Acho que deve haver limites para a intervenção médica. Quando a minha avó teve uma insuficiência renal grave nos seus 91 anos, sendo muito ténue a esperança de que a situação se pudesse reverter, os meus pais moveram céus e terra para que ela pudesse receber em casa os mesmos cuidados que receberia num hospital, e ela morreu ao lado de quem amava, rodeada de carinho.
Exemplo contrário é a de uma tia-avó, velhinha, gravemente doente, que só pedia para não a voltarem a levar para o hospital (para onde estava a ir de urgência todas as semanas, tendo alta quando melhorava, voltando quando piorava). A família não a ouviu, e ela morreu durante a noite, entre estranhos, no meio de mais injecções e exames que a nada levavam, nem podiam levar, porque a sentença estava dada. A maior dor dos familiares mais próximos foi não terem acedido ao seu pedido e, desse modo, permitido que ela morresse na sua companhia.

Há um blog que acho que nunca citei, mas gosto muito de ler (irá para a coluna do lado no dia em que tiver tempo e pachorra para a actualizar - já não há-de faltar muito). Chama-se Desabafos de um médico, é escrito por um médico em início de carreira a quem desejo, mais do que tudo, que nunca perca a sensibilidade de que dá mostras no que escreve. Outro dia, ele copiou para o blog um artigo de jornal que me fez pensar, e com o qual concordo. Este, sobre um parecer aprovado pelo Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, que admite a suspensão dos tratamentos de suporte básico de vida a doentes em estado vegetativo persistente.

Isto, note-se (e é frisado no texto), não é eutanásia. Acho que se lhe deve chamar, antes, humanidade. Realismo. Sentido das proporções.
Todas as vezes que preparo os comprimidos do meu pai para a semana e coloco no devido lugar o medicamento que lhe mantém o coração forte, penso se não há nisso uma enorme contradição, ditada por todos os avanços da medicina. Mantém-se forte o coração de um corpo débil de 81 anos. Prolonga-se através da medicação um estado doloroso. No entanto, todas as semanas o medicamento é dado. E apesar da dor que me causa ver o meu pai assim, e de, como disse acima, nem sequer ser capaz de estar com ele todos os dias, poder dar-lhe um beijo e receber outro de volta, senti-lo agarrar a minha mão com força, vê-lo rir-se com as coisas que lhe conto da minha filha, ver o seu ar feliz com os netos ao redor, compensa. Um dia, vou sentir muita falta destes pequenos gestos em que tudo que é preciso é dito, e da sua presença, mesmo neste estado.


 
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