Carta aberta à Srª Ministra da Ciência e do Ensino Superior
Tenho quebrado o meu princípio de não abordar certos temas neste blog por força das circunstâncias. Abro uma excepção ainda maior com a transcrição na íntegra da carta que se segue, escrita pelo Prof. Doutor João Vasconcelos Costa. Ela merece ser lida e conhecida mesmo por quem não costuma ir ao Professorices ou ao site sobre o Ensino Superior deste Professor (cujo endereço se encontra no Professorices). Aqui fica, para pensarmos nas grandes verdades que contém, quer estejamos ligados a estes temas, quer não.
Senhora Ministra,
Como não a conheço mas ouço dizer que é uma excelente investigadora, fui ver o seu currículo e finalmente compreendi a razão de ser da tão discutida proposta dos "100 artigos". Afinal, é óbvio. V. Exa. é professora catedrática, com 48 anos de idade (olhe que só lhe faltam 2 para entrar naquela senioridade em que já se deixa de estar "com as mãos na massa" da investigação) e com 14 de categoria. Mas só tem 92 artigos e não posso garantir que estejam todos indexados. Também não sei se terá 200 citações, mas fiquemos só pelos artigos. Afinal, V. Exa. tem toda a razão. É destes seniores que nós precisamos, porque quanto a jovens doutorados ou mesmo aos essenciais "middle career", já cá temos excesso e não é preciso nenhum plano especial, antes pelo contrário. Eles contentam-se com as bolsas, não nos vão aborrecer para a universidade como professores contratados, muito menos quando vêm doutorados do estrangeiro, com ideias que têm provado muito bem lá fora mas que, evidentemente, não se adaptam às nossas especificidades, com as quais as nossas universidades e os seus mestres têm sabido conviver de forma tão inteligente e eficaz. De tal forma que eu, até há alguns anos critico feroz da universidade, acabei forçosamente por me render à opinião de tantos brilhantes mestres de que a nossa universidade e a nossa investigação não nos envergonham. Envergonharmo-nos seria estarmos atrás do Burkina Fasso. Ah, então o Ramires que todos temos cá dentro empunharia a espada.
Mas já estava a desviar-me do essencial. Se V. Exa. tivesse fixado como limite as 90 publicações, abaixo das suas 92, o que seria? Que diriam os invejosos e despeitados, logo aproveitados por essa oposição que não compreende a obra histórica de "evolução" do seu governo (com cuja politica V. Exa. é solidária e co-responsável - sim, que não há isso de ministérios "técnicos"), depois de 30 anos de revolução que alguns ainda teimam em celebrar? Diriam certamente que V. Exa. se queria beneficiar (sim, porque ainda não se percebe bem se o novo modelo não poderá dar benefícios pessoais a ilustres catedráticos portugueses)! V. Exa. bem podia dizer que não tem culpa de ser de uma área em que se publica imenso, em que há revistas como nabos no nabal, em que há matéria de publicação tipo caixa negra, em que entra material por um lado e sai artigo por outro. Os deputados da oposição continuariam a não ver essa óbvia atitude de honestidade e isenção pessoal da sua parte. Também sei que V. Exa. sabe que, para contemplar a generalidade das disciplinas, teria que baixar esse limite para coisas tão vergonhosas como 30 ou 40 artigos. Só um néscio politico é que não compreende a clarividência de V. Exa. ao nem sequer pensar numa coisa destas. No dia seguinte, teríamos todos os catedráticos de engenharia, de medicina, de química (bem, não todos, porque alguns só têm meia dúzia de publicações) a fazer uma manifestação a exigir o dobro do vencimento, a premiar o mérito.
Receba, pois, o meu aplauso. E ainda mais o terá quando, arrumada a politica científica, se virar para a do ensino superior. Decerto que, nos próximos meses - porque Bolonha já vem aí - surpreenderá toda a Europa, mostrando o génio português. Sim, porque a generalidade dos países vem a trabalhar sobre o processo de Bolonha desde 1999, mas com aquele trabalho árduo, de suor a cair, de insatisfação com a ideia repentina e brilhante, que caracteriza tantos europeus. Não sou tão chauvinista que não reconheça o mérito de muito desse trabalho, mas é trabalho rotineiro, disciplinado, segundo as regras, com o objectivo da qualidade. Do que eu gosto é do trabalho à nossa maneira: desenrascado, sem pretensiosices de teoria, habilidoso para embrulhar com papel novo o caco velho, com o brilho que a nossa habilidade retórica dá às boas velhas ideias, como a solarina aos candelabros.
V. Exa. maravilhará a Europa com as ideias acutilantes de uns conselheiros de que se soube rodear, nomeadamente pesoas que, nos seus mandatos, colocaram as suas universidades caducas na fronteira da modernidade. É injusto dizer-se que V. Exa. não demonstrou ainda ter uma única ideia sobre a universidade dos dias de hoje, sobre os desafios que lhe coloca a sociedade do conhecimento, sobre a sua transformação no instrumento privilegiado da competitividade nos tempos da globalização, a par de guardiã do património cultural da humanidade. Afinal, tudo isto são "chavões", que uns poucos despeitados, com pretensões a pensadores da educação superior, andam por aí a escrever, quando faziam melhor em trabalhar e em gerar boas ideias práticas sobre os verdadeiros problemas, como, por exemplo, o de reduzir em 75%, até 2010, o financiamentoi estatal da educação superior.
E estou certo de que V. Exa. está a trabalhar sobre tudo isto. Nunca disse nada, nunca escreveu um artigo sobre educação, nunca tomou posição em nenhum debate, mas as pessoas não estão a perceber a magnífica estratégia de V. Exa. Faz muito bem em guardar ciosamente as suas ideias nos confins do seu cérebro, como se fosse no canto remoto do sótão, até que, ao revelá-las, o mundo veja que, com a herança que temos dos genes de quinhentos, os novos preparatórios de medicina nas ilhas não pedem meças à Harvard Medical School e que, finalmente, à frente de Cambridge, vem a sua nova Universidade de Bragança.
PS – Afinal, Sra. Ministra, sou sempre precipitado e tenho a mania de dizer coisas. Só depois de ter fechado esta carta é que a dei a ler à minha mulher, que tem bom senso. E não é que ela me disse: "então tu não ias pedir à ministra um lugar na comissão ministerial para a reforma do formato da capa das teses de doutoramento? Agora já não consegues". Olhe, Sra. Ministra, não ligue a tudo o que eu disse nesta carta, porque uma senhazinha de presença faz-me jeito.
Senhora Ministra,
Como não a conheço mas ouço dizer que é uma excelente investigadora, fui ver o seu currículo e finalmente compreendi a razão de ser da tão discutida proposta dos "100 artigos". Afinal, é óbvio. V. Exa. é professora catedrática, com 48 anos de idade (olhe que só lhe faltam 2 para entrar naquela senioridade em que já se deixa de estar "com as mãos na massa" da investigação) e com 14 de categoria. Mas só tem 92 artigos e não posso garantir que estejam todos indexados. Também não sei se terá 200 citações, mas fiquemos só pelos artigos. Afinal, V. Exa. tem toda a razão. É destes seniores que nós precisamos, porque quanto a jovens doutorados ou mesmo aos essenciais "middle career", já cá temos excesso e não é preciso nenhum plano especial, antes pelo contrário. Eles contentam-se com as bolsas, não nos vão aborrecer para a universidade como professores contratados, muito menos quando vêm doutorados do estrangeiro, com ideias que têm provado muito bem lá fora mas que, evidentemente, não se adaptam às nossas especificidades, com as quais as nossas universidades e os seus mestres têm sabido conviver de forma tão inteligente e eficaz. De tal forma que eu, até há alguns anos critico feroz da universidade, acabei forçosamente por me render à opinião de tantos brilhantes mestres de que a nossa universidade e a nossa investigação não nos envergonham. Envergonharmo-nos seria estarmos atrás do Burkina Fasso. Ah, então o Ramires que todos temos cá dentro empunharia a espada.
Mas já estava a desviar-me do essencial. Se V. Exa. tivesse fixado como limite as 90 publicações, abaixo das suas 92, o que seria? Que diriam os invejosos e despeitados, logo aproveitados por essa oposição que não compreende a obra histórica de "evolução" do seu governo (com cuja politica V. Exa. é solidária e co-responsável - sim, que não há isso de ministérios "técnicos"), depois de 30 anos de revolução que alguns ainda teimam em celebrar? Diriam certamente que V. Exa. se queria beneficiar (sim, porque ainda não se percebe bem se o novo modelo não poderá dar benefícios pessoais a ilustres catedráticos portugueses)! V. Exa. bem podia dizer que não tem culpa de ser de uma área em que se publica imenso, em que há revistas como nabos no nabal, em que há matéria de publicação tipo caixa negra, em que entra material por um lado e sai artigo por outro. Os deputados da oposição continuariam a não ver essa óbvia atitude de honestidade e isenção pessoal da sua parte. Também sei que V. Exa. sabe que, para contemplar a generalidade das disciplinas, teria que baixar esse limite para coisas tão vergonhosas como 30 ou 40 artigos. Só um néscio politico é que não compreende a clarividência de V. Exa. ao nem sequer pensar numa coisa destas. No dia seguinte, teríamos todos os catedráticos de engenharia, de medicina, de química (bem, não todos, porque alguns só têm meia dúzia de publicações) a fazer uma manifestação a exigir o dobro do vencimento, a premiar o mérito.
Receba, pois, o meu aplauso. E ainda mais o terá quando, arrumada a politica científica, se virar para a do ensino superior. Decerto que, nos próximos meses - porque Bolonha já vem aí - surpreenderá toda a Europa, mostrando o génio português. Sim, porque a generalidade dos países vem a trabalhar sobre o processo de Bolonha desde 1999, mas com aquele trabalho árduo, de suor a cair, de insatisfação com a ideia repentina e brilhante, que caracteriza tantos europeus. Não sou tão chauvinista que não reconheça o mérito de muito desse trabalho, mas é trabalho rotineiro, disciplinado, segundo as regras, com o objectivo da qualidade. Do que eu gosto é do trabalho à nossa maneira: desenrascado, sem pretensiosices de teoria, habilidoso para embrulhar com papel novo o caco velho, com o brilho que a nossa habilidade retórica dá às boas velhas ideias, como a solarina aos candelabros.
V. Exa. maravilhará a Europa com as ideias acutilantes de uns conselheiros de que se soube rodear, nomeadamente pesoas que, nos seus mandatos, colocaram as suas universidades caducas na fronteira da modernidade. É injusto dizer-se que V. Exa. não demonstrou ainda ter uma única ideia sobre a universidade dos dias de hoje, sobre os desafios que lhe coloca a sociedade do conhecimento, sobre a sua transformação no instrumento privilegiado da competitividade nos tempos da globalização, a par de guardiã do património cultural da humanidade. Afinal, tudo isto são "chavões", que uns poucos despeitados, com pretensões a pensadores da educação superior, andam por aí a escrever, quando faziam melhor em trabalhar e em gerar boas ideias práticas sobre os verdadeiros problemas, como, por exemplo, o de reduzir em 75%, até 2010, o financiamentoi estatal da educação superior.
E estou certo de que V. Exa. está a trabalhar sobre tudo isto. Nunca disse nada, nunca escreveu um artigo sobre educação, nunca tomou posição em nenhum debate, mas as pessoas não estão a perceber a magnífica estratégia de V. Exa. Faz muito bem em guardar ciosamente as suas ideias nos confins do seu cérebro, como se fosse no canto remoto do sótão, até que, ao revelá-las, o mundo veja que, com a herança que temos dos genes de quinhentos, os novos preparatórios de medicina nas ilhas não pedem meças à Harvard Medical School e que, finalmente, à frente de Cambridge, vem a sua nova Universidade de Bragança.
PS – Afinal, Sra. Ministra, sou sempre precipitado e tenho a mania de dizer coisas. Só depois de ter fechado esta carta é que a dei a ler à minha mulher, que tem bom senso. E não é que ela me disse: "então tu não ias pedir à ministra um lugar na comissão ministerial para a reforma do formato da capa das teses de doutoramento? Agora já não consegues". Olhe, Sra. Ministra, não ligue a tudo o que eu disse nesta carta, porque uma senhazinha de presença faz-me jeito.