Um pouco mais de azul

quarta-feira, dezembro 22, 2004

Outros Natais

Quando eu tinha a idade da Miosótis, os preparativos para o Natal começavam apenas depois do dia dos meus anos e da passagem lá por casa de um bando de pequenos terroristas - como eu compreendo bem, agora, a cautela dos meus pais, que não queriam ver estragado o velho e enorme presépio que, todos os anos, vinha enfeitar um canto da sala. Num recanto estreito, com a ajuda primeiro de bancos, caixotes e montes de revistas, depois de umas muito funcionais placas de esferovite cortadas à medida, o meu pai instalava a estrutura do presépio. Essa estrutura era depois toda coberta com plástico e por cima dele era colocado um tapete de musgo, que iamos comprar ao mercado. Cheirava tão bem! Trazia por vezes uns pedaços de líquenes agarrados, que eu guardava para pôr bem juntinho ao Menino Jesus, por os achar especialmente bonitos. As figuras do presépio ficavam, de ano para ano, numa enorme caixa, no sótão, e só o meu pai tinha força e braços suficientemente grandes para a trazer cá para baixo (hoje a caixa parece pequena, até...). A minha irmã e eu desembrulhávamos as figuras, colocávamo-las no presépio. Eu gostava especialmente de dispor o imenso rebanho de ovelhas que tinhamos - todos os anos acrescentado com mais umas que o meu pai comprava, e, acima de tudo, arranjar o interior da cabana onde ficavam as imagens da Sagrada Família. Com todo o cuidado, arranjava lugar para Maria, José, a vaca, o burro, a manjedoura de palhinhas com o Menino deitado, e ao lado dele os cordeirinhos mais pequeninos, que me encantavam, e que eu queria que fizessem companhia a Jesus.
Durante todo o tempo que demorava a construção do presépio, eu cantava canções de Natal. O meu pai tinha um belíssimo disco com as mais conhecidas, cantadas por um coro inglês, e eu sabia a letra de todas, interpretando muitas vezes à minha maneira as palavras de uma língua que estava a começar a aprender. A essas juntava todas as outras, portuguesas, que conhecia, e ainda mais umas quantas cá da minha lavra.
Lembrar-me do Natal da minha infância é recordar o cheiro do musgo, a minha eterna cantoria, o fazer do presépio, as árvores de Natal que durante muitos anos foram pinheiros verdadeiros que por vezes caíam, apesar de todos os cuidados em fixá-los bem dentro de um vaso, e cujas agulhas picavam enquanto lhes prendíamos as bolas, com muito cuidado, porque se partiam.

O presépio faz-se agora cá em casa muito mais cedo, logo nos feriados de Dezembro. Deixo à minha filha o gosto de o fazer, com as figuras antigas que havia a mais no presépio dos meus pais, e de enfeitar a árvore. Revejo-me no seu cuidado responsável e no carinho que coloca ao dispor sobre a tampa aberta da escrivaninha todas as personagens, especialmente as ovelhinhas e o Menino. Tenho pena que ela não possa ver o "meu" presépio. Mas tem o dela, e cria as suas próprias tradições. Que um dia contará aos seus filhos, e como eu, um dia, rever-se-á nos gestos deles, que repetirão os que hoje ela executa. E, se Deus quiser, eu estarei lá para ver e participar, e contar como se fazia quando eu era pequenina, num perpetuar de gestos, ritos e histórias que me encanta e faz sentir parte de algo maior do que eu.


 
Site 

Meter