Um pouco mais de azul

quarta-feira, setembro 01, 2004

Desamar

É uma das coisas mais dificeis: desamar. Destruir voluntariamente quanto se construiu ao longo de anos, dar a machadada final no que estava podre mas ia sobrevivendo, quebrar laços que nos ligam a alguém não só fisicamente, mas afectiva, emocional, espiritualmente. Quebrar um imaginário a dois. Deixar de ser "nós" para voltar a ser "eu". Abandonar um espaço, ou ver esse espaço abandonado por aquele de quem nos separamos, e perceber que todos os objectos que nos rodeiam, ou deixaram de nos rodear, magoam, ferem, trazem recordações que nos fazem sangrar. É todo um mundo que se destrói, que se reduz a cinzas. E depois vem a solidão, que pesa insuportavelmente, mesmo quando é por nós desejada. E vêm as tentações de preencher o vazio, de voltar a sentir - mas algo cá dentro está tão ferido que não se é capaz de sentir, ou o que se sente não é nada do que se queria sentir, e nada vale o que devia valer. Caimos em contradições sobre contradições. Aceitamos o que sabemos não ter futuro e fugimos do que pressentimos poder tê-lo, por mais que desejemos o contrário, porque nos recusamos a sentir, a dar, a permitir que alguém se chegue tão perto que nos possa magoar de novo. Erguemos fortes muralhas em redor de nós próprios, desejando ardentemente que alguém as quebre, mas fugindo a sete pés se esse alguém parece ir consegui-lo. Até porque são tempos de estarmos sozinhos, de nos confrontarmos connosco próprios - mesmo quando nos queremos iludir e vamos cedendo à tentação da companhia, que quase sempre muda bem depressa porque, na verdade, o que nos agrada é a ideia da companhia, ser a de A ou B é quase indiferente, no estado de anestesia do coração em que nos sentimos, e por mais difícil que seja aceitarmos que é assim que estamos. Difícil até ao momento em que olhamos para quem está ao lado e nos perguntamos: "o que é que ando a fazer?"
Depois, muito depois, quando as águas se acalmam, quando as feridas já não sangram, talvez um milagre se dê. Talvez alguém consiga chegar ao topo da muralha, sem nós darmos por ela e sem termos tempo de o impedir de subir, porque o fez com toda a calma pelo lado que não estávamos a guardar, já que nos parecia inexpugnável. Talvez alguém saiba chegar de mansinho e mostrar que não nos magoa, não nos faz mal, só nos traz paz. Talvez haja uns braços que se abrem e nos acolhem neles, e talvez, sem sequer saber como, nos sintamos chegados a um porto de abrigo. Talvez ousemos confiar e descansar um pouco nesse porto de águas calmas, encostando a cabeça nesses braços que desejam enlaçar-nos. Talvez se descubra que nesse porto se está em casa. Quem sabe?...


 
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