Um pouco mais de azul

quarta-feira, maio 12, 2004

A hipocondria

Descobri que fui linkada por um blog chamado Dói-me, o qual, se não é uma brincadeira, é escrito por alguém obcecado por doenças. Não sei se vai gostar de ler as linhas que se seguem; paciência, não escrevo para agradar a ninguém mas ao sabor do que me apetece ou faz pensar.

Viver com pavor de doenças, em permanente sobressalto por causa de uma dor é um desperdício de tempo, de vida, de paciência - do próprio e de quem lhe é próximo. Sei do que falo: um hipocondríaco fez parte da minha família durante mais de dez anos. Enjoei o tema doenças para o resto da minha vida e pelas reencarnações todas (em que não acredito). É que, além de ter de assistir às pormenorizadíssimas descrições de quanto sentia ou imaginava sentir, os meus pais estavam na altura com doenças sérias e graves. Tinha de um lado as doenças e as queixas imaginadas; do outro, os males reais e graves de quem não dizia um "ai".
Enquanto a minha mãe definhava, dia a dia, ouvia-o a ele ao telefone a falar das dores de estômago, da comida que lhe tinha feito mal, da unha do pé encravada, da falta de vontade de fazer alguma coisa. Enquanto o meu pai estava internado sem sabermos se ia sobreviver, inquietava-o a distância a que a casa da praia ficava do hospital, e como não se sentia lá à vontade porque, se tivesse um enfarte, não chegaria a tempo para ser tratado. Enquanto eu tentava não me ir abaixo, numa fase complicadíssima em que o mundo parecia ter caído sobre a minha cabeça, ele tratava-se da vigésima nona depressão, com muitos comprimidos que, a meu ver, seriam substituíveis com vantagem por algum interesse na vida para além das doenças.
O pior é que não podia mandá-lo simplesmente à fava, com todas as letras(maldito chazinho que bebi em criança...). Ia resmungando uns "sins", "pois", "não se preocupe que isso não é nada", enquanto nem ouvia o que dizia longamente ao telefone. Mandava umas indirectas desvalorizando os sintomas. Ficava pasma perante a catrefada de exames médicos complicados, dolorosos, incómodos a que se submetia por temer ter um cancro. Mais prosaicamente, fazia os possíveis por não ter de telefonar lá para casa - passei por antipática, claro está, mas isso era preferível ao frete hipocondríaco.
Mesmo já divorciada, não escapo de vez em quando a descrições pormenorizadas das suas maleitas. Entra por um ouvido e sai pelo outro, claro, ao mesmo tempo que demonstro uma pressa extrema, uma imensa urgência (de me pôr a milhas, claro). Não consigo entender quem vive assim. Não tenho paciência.

Mas a vida tem ironias terríveis. Agora ele tem mesmo um cancro. E por incrível que pareça, está mais calmo, mais feliz.

Se algum conselho me é permitido dar ao João, o autor do referido blog, é o seguinte: deite o termómetro fora, esqueça a distância a que a farmácia fica, ignore as dores que ocasionalmente sente - e viva! Viva a vida com bom humor, alegria, um sorriso na cara, generosidade para com os outros. Metade dos seus males passa logo, acredite, e vai criando anti-corpos que o protegerão de outras maleitas, reais ou imaginárias. Acredite que será muito mais feliz e ajudará a serem mais felizes os que lhe são queridos.


 
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