Onde se começa em casamentos reais e se termina reflectindo sobre autos-de-fé
Hoje, a notícia do dia é, naturalmente, o casamento do herdeiro da coroa espanhola. O relevo dado pelos nossos media ao evento faz pensar que se trata de um acontecimento de primordial importância para Portugal... Pela minha parte, espero que Filipe e Letizia sejam felizes (desejo sempre isso a todos os noivos) e que Espanha encontre neles, um dia, o pólo congregador de um país onde os separatismos regionalistas são tantos e tão vincados. O meu interesse pelo assunto termina aqui.
Esta boda fez-me lembrar outros tempos. Aqueles em que principes e princesas portugueses e castelhanos casavam entre si, selando pelos laços matrimoniais alianças político-estratégicas de natureza variada. Lembrei-me, ao ler o que hoje escreve JVC no Professorices, que foi o casamento de D. Manuel I com a filha dos Reis Católicos, há mais de cinco séculos, que ditou a sorte dos judeus portugueses e, também, em boa medida, do futuro do reino.
Li outro dia o manuscrito de um processo da Inquisição. Na memória formal das confissões assinadas pelo réu, ficou registado o drama de um cristão-novo que voltou a Portugal no exercício da sua profissão de mercador e se viu denunciado ao Santo Ofício, que o manteve longos meses encarcerado. Tendo partido ainda em bebé com os pais para a Holanda e depois para Ferrara, aí vivera de acordo com a lei judaica, esquecendo o baptismo cristão que recebera ainda em Portugal. Esse era o seu grave, gravíssimo crime... Foi-me impossível não sentir revolta e vergonha ao decifrar, linha a linha, o desenrolar do seu processo. O réu acabou por partir em liberdade, depois de ter de comparecer num auto-de-fé, ter dado informações sobre outros cristãos-novos regressados às práticas judaicas em Ferrara e ter-se mostrado desejoso de passar a viver de acordo com a fé cristã. Não acredito que, por um minuto, tenha acreditado no Deus que lhe impunham à força e sob as ameaças da tortura e da fogueira. Não faço ideia do que lhe veio a acontecer, mas espero que tenha conseguido voltar para Ferrara e aí ter terminado os seus dias sossegado, na observância da sua fé ancestral.
Numa escola dos arredores da minha cidade, vai haver uma reconstituição histórica, como tantas vezes se faz, hoje em dia. Mas desta vez vai-se reconstituir um auto-de-fé. Quando li as breves linhas que noticiavam este evento, dei comigo a pensar se tinha percebido bem. Sou eu que estou a ver tudo ao contrário, ou isto parece estranho e pode mesmo ser perverso? Presumo que tenha havido toda uma preparação por parte dos professores para explicar o que eram os autos-de-fé, o porquê da sua existência, as razões pelas quais os devemos condenar liminarmente. Parto do princípio de que o espírito desta realização seja clara e inequivocamente o de condenação. Mas, mesmo assim, isto soa-me mal. O objectivo destas reconstituições históricas não é lúdico, para além de didáctico? Irão os alunos passar o dia a reflectir sobre a ignomínia dos autos-de-fé, ou a rir à gargalhada perante a brincadeira proposta? Irão os alunos brincar vestidos de judeu condenado, de judeu perdoado, de padre da Inquisição, de carrasco?
Será que estou a ser preconceituosa? Será que estou a ver isto por um prisma errado? O que sei é que não quero a minha filha, daqui por uns anos, a participar em reconstituições de autos-de-fé. Nem de enforcamentos públicos. Nem de campos de concentração nazi. Brinquem às feiras, aos casamentos, aos bailaricos, aos torneios. Mas há coisas com as quais não se brinca. Mesmo que as intenções sejam as melhores - o inferno, ao que consta, está cheiinho delas. E a Santa Inquisição (acreditam que me custa colocar esse adjectivo a preceder tal substantivo?) também as tinha. Afinal, pelo fogo purificador salvavam-se as almas dos pecadores...
Esta boda fez-me lembrar outros tempos. Aqueles em que principes e princesas portugueses e castelhanos casavam entre si, selando pelos laços matrimoniais alianças político-estratégicas de natureza variada. Lembrei-me, ao ler o que hoje escreve JVC no Professorices, que foi o casamento de D. Manuel I com a filha dos Reis Católicos, há mais de cinco séculos, que ditou a sorte dos judeus portugueses e, também, em boa medida, do futuro do reino.
Li outro dia o manuscrito de um processo da Inquisição. Na memória formal das confissões assinadas pelo réu, ficou registado o drama de um cristão-novo que voltou a Portugal no exercício da sua profissão de mercador e se viu denunciado ao Santo Ofício, que o manteve longos meses encarcerado. Tendo partido ainda em bebé com os pais para a Holanda e depois para Ferrara, aí vivera de acordo com a lei judaica, esquecendo o baptismo cristão que recebera ainda em Portugal. Esse era o seu grave, gravíssimo crime... Foi-me impossível não sentir revolta e vergonha ao decifrar, linha a linha, o desenrolar do seu processo. O réu acabou por partir em liberdade, depois de ter de comparecer num auto-de-fé, ter dado informações sobre outros cristãos-novos regressados às práticas judaicas em Ferrara e ter-se mostrado desejoso de passar a viver de acordo com a fé cristã. Não acredito que, por um minuto, tenha acreditado no Deus que lhe impunham à força e sob as ameaças da tortura e da fogueira. Não faço ideia do que lhe veio a acontecer, mas espero que tenha conseguido voltar para Ferrara e aí ter terminado os seus dias sossegado, na observância da sua fé ancestral.
Numa escola dos arredores da minha cidade, vai haver uma reconstituição histórica, como tantas vezes se faz, hoje em dia. Mas desta vez vai-se reconstituir um auto-de-fé. Quando li as breves linhas que noticiavam este evento, dei comigo a pensar se tinha percebido bem. Sou eu que estou a ver tudo ao contrário, ou isto parece estranho e pode mesmo ser perverso? Presumo que tenha havido toda uma preparação por parte dos professores para explicar o que eram os autos-de-fé, o porquê da sua existência, as razões pelas quais os devemos condenar liminarmente. Parto do princípio de que o espírito desta realização seja clara e inequivocamente o de condenação. Mas, mesmo assim, isto soa-me mal. O objectivo destas reconstituições históricas não é lúdico, para além de didáctico? Irão os alunos passar o dia a reflectir sobre a ignomínia dos autos-de-fé, ou a rir à gargalhada perante a brincadeira proposta? Irão os alunos brincar vestidos de judeu condenado, de judeu perdoado, de padre da Inquisição, de carrasco?
Será que estou a ser preconceituosa? Será que estou a ver isto por um prisma errado? O que sei é que não quero a minha filha, daqui por uns anos, a participar em reconstituições de autos-de-fé. Nem de enforcamentos públicos. Nem de campos de concentração nazi. Brinquem às feiras, aos casamentos, aos bailaricos, aos torneios. Mas há coisas com as quais não se brinca. Mesmo que as intenções sejam as melhores - o inferno, ao que consta, está cheiinho delas. E a Santa Inquisição (acreditam que me custa colocar esse adjectivo a preceder tal substantivo?) também as tinha. Afinal, pelo fogo purificador salvavam-se as almas dos pecadores...